Deserto encantado


Vento e chuvas esculpiram a paisagem dos Lençóis Maranhenses. Mas esse parque enfrenta problemas


     
George Steinmetz
Maranhão: paisagem de dunas e lagoas
O vento e a água esculpiram um improvável mundo de dunas e lagoas na costa do Maranhão. É como uma miragem, mas é real
No litoral do Maranhão, no Nordeste do Brasil, as dunas têm formato de lua crescente e, vistas do céu, lembram lençóis brancos expostos para secar sob o sol em tarde de ventania. É uma terra mágica, onde cardumes de peixes prateados nadam em lagoas que se formam depois das chuvas, pastores conduzem rebanhos de cabras sobre montanhas de areia branca, em caravanas bíblicas, e pescadores saem para enfrentar o mar tempestuoso sob a orientação das estrelas e de fantasmas de velhos naufrágios.
"A sensação é a de estar numa espécie de mundo paralelo, onde elementos distintos da natureza se encontram, com montanhas de areia e lagoas, rios e oásis de vegetação, tendo o mar como moldura ao fundo", descreve a analista ambiental Carolina Alvite, ex-diretora do Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, uma área de 155 mil hectares demarcada em 1981 para proteger o ecossistema das dunas e a vegetação de restinga no entorno. No coração do deserto, aos olhos de forasteiros entorpecidos pelo verde ou azul intenso das lagoas, a sensação é a de que o mar das Bahamas ou das Maldivas foi, num passe de mágica, transportado para o meio do Saara.
Este é um deserto onde as miragens são reais.
Há 27 anos, o geógrafo Antônio Cordeiro Feitosa, professor da Universidade Federal do Maranhão, tenta entender a singular dinâmica dos Lençóis, caminhando pelas areias com seus alunos, medindo a direção e a velocidade do vento, a temperatura e a umidade do ar e da superfície do solo. As dunas fixas mais antigas, descobriram os pesquisadores, foram formadas até 12 mil anos atrás, e nos contam histórias de oscilações climáticas em que períodos mais secos foram intercalados por outros mais úmidos. "Os Lençóis são, acima de tudo, um palco de processos sedimentares raros e intensos, pelos quais a paisagem é transformada radicalmente por rigorosos ciclos sazonais", conta Cordeiro.
Todas as respostas vêm da água. A própria areia vem da água. A marcha de acontecimentos naturais que alimenta o cenário insólito começa quase 100 quilômetros a leste, no delta do rio Parnaíba, cujo leito caudaloso carrega para o mar muita areia e argila desde o interior do continente - outros rios, como o Preguiças, são coadjuvantes no mesmo trabalho. Essa massa de sedimentos é depois empurrada por correntes marinhas que fluem no sentido leste-oeste, e a maior parte dela acaba depositada nos 70 quilômetros da orla dos Lençóis, na área do parque nacional. Aqui, assim como em uma vasta faixa de costa no norte do Brasil, as marés são altas, vão a 7 ou 8 metros, e desenham praias muito largas e planas. Entra em ação a seguir um vento que sopra sem trégua na direção nordeste, sobretudo na estação seca, entre julho e dezembro, e se encarrega de conduzir a areia de volta ao interior por uma distância de quase 50 quilômetros, esculpindo dunas a perder de vista, cujas maiores podem alcançar 40 metros de altura. Grande parte delas é de um tipo conhecido como barcana, em formato de meia-lua, em que a parte convexa é sempre voltada para o vento.
Seria um deserto típico, arenoso e estéril, de horizontes amplos e luzes ofuscantes, mas então chove, e muito. A cada ano, entre janeiro e junho, a região recebe cerca de 125 centímetros de chuva, ao passo que, por definição científica, desertos têm precipitações que não superam 25 centímetros por ano. Um subsolo argiloso facilita a retenção da umidade e, em alguns lugares, o desenvolvimento de vegetação perene - há dois oásis habitados no interior dos Lençóis. Quando as areias ficam saturadas, liberam água para o lençol freático. Como a argila não permite a percolação da água para zonas mais profundas, a drenagem ocorre horizontalmente para aflorar em depressões entre as dunas, formando as la-goas. Algumas têm mais de 90 metros de comprimento e até 3 metros de profundidade. No início de julho, época em que estão mais cheios, esses corpos d’água chegam a interligar-se entre eles e com alguns rios que avançam pelas dunas, como o Negro. Com isso, os peixes podem migrar para as lagoas, onde se alimentam de outros peixes ou de larvas de insetos depositadas na areia. Certas espécies, como a traíra, passam toda a estação seca dormentes na lama, só despertando quando recomeçam as chuvas. Na seca, com a evaporação causada pelo calor equatorial, a água pode baixar 1 metro por mês, até que a maioria das lagoas seca completamente, à espera da volta das águas. "Na verdade, pelos critérios técnicos mais rigorosos, os Lençóis não são uma região desértica", diz Cordeiro.
Tal como as dunas e as lagoas, a gente dos Lençóis muda de acordo com a época do ano - além da população dos vilarejos existentes no entorno do campo de dunas, cerca de 90 homens, mulheres e crianças vivem no interior do parque, nos oásis de Queimada dos Britos e Baixa Grande. Na estação seca, os nativos criam galinha, cabra e vaca; cultivam mandioca, feijão e caju; e extraem a fibra de buriti e carnaúba, as palmeiras generosas que brotam nas margens dos alagados. Quando chegam as chuvas, a piscosidade das águas aumenta, assim como o plantio se torna mais árduo. Muitos partem para o litoral, onde vivem da pesca em cabanas improvisadas na praia deserta. Ali salgam e secam a carne do camarupim e de outras espécies para intermediários que, depois, vendem o pescado nas cidades.
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, que administra os parques nacionais brasileiros, aplica atualmente uma política de populações tradicionais, uma tentativa de estabelecer diálogo e procurar soluções de interesse comum entre as prioridades dos parques nacionais e as pessoas que vivem dentro das áreas protegidas. "Os nativos são importantes, pois preservam um estilo de vida que também é patrimônio, mas é preciso buscar um caminho que permita que esse modo de vida não ameace a biodiversidade local", avalia Carolina Alvite.
A maior ameaça aos Lençóis, de fato, vem de fora. Em 2002, foi pavimentada a estrada entre a capital do Maranhão, São Luís, e Barreirinhas, o principal acesso ao parque nacional, facilitando uma viagem que, de ônibus por uma via de terra ruim, podia durar dez horas. Tudo vem mudando muito rápido desde então. Em meados dos anos 1990, a cidade era uma escala singela para os forasteiros, que ali dispunham de acolhida cordial em pensões familiares e gastavam dias explorando o Preguiças, o rio de nome sugestivo que banha a cidade, ou vadiando pelas ruas sombreadas de mangueiras, antes de enfim se aventurar pelo campo de dunas. Barreirinhas era um lugar de raro calor humano. O asfalto, porém, permitiu o afluxo cada vez maior de turistas, brasileiros e estrangeiros, e a rotina pacata acabou dando lugar ao comércio voraz, à especulação imobiliária e à impessoalidade das relações sociais. Atualmente, mais de 60 mil pessoas visitam a região por ano - a tal ponto que o tráfego de quadriciclos ou jipes pelas dunas começa a preocupar os agentes do parque.
"Não é permitido andar com esses veículos nas dunas", diz Carolina, que considera tais passeios uma ameaça aos maçaricos e trinta-réis migratórios, assim como às aves que lá nidificam. Em um esforço para promover um tipo de turismo sustentável, baseado em travessias pedestres de longo curso, ela organizou em 2009 uma caminhada na qual um grupo de ambientalistas percorreu 65 quilômetros, de uma ponta à outra do parque, em busca de sinais de criaturas que vivem nas dunas, entre elas o tigre-d’água brasileiro, o tatupeba e o gambá-de-orelha-branca.
Turistas ou moradores, todos se surpreendem com a beleza em constante mutação dos Lençóis. Manoel Brito, o falecido patriarca de Queimada dos Britos, mantinha um rebanho de 500 cabras, que vagavam pelo areal. Percorrendo as dunas com os animais, ele ficava maravilhado com a movimentação eterna da paisagem. "Tudo aqui sempre parece igual", me contou ele certa vez. "Mas todo dia, se a gente prestar atenção, dá para ver que a areia mudou de lugar. Deus criou essas montanhas brancas e fez com o que vento brincasse com elas sem parar."
No Maranhão, decerto, nem tudo é o que parece ser, e algumas miragens avançam para além das areias, rumo ao imaginário da população. Em seu livro O Dono do Mar, um marco do realismo mágico latino-americano na literatura brasileira, o ex-presidente José Sarney descreve a sorte dos pescadores de seu estado, habitantes de um mundo sombrio e desatinado, em que barcos saem para o mar em noite de tempestade e não voltam jamais, e os homens veem as moças virgens de suas vilas ser capturadas por monstros dos mangues, os piocos, que aparecem na orla, noite adentro, entoando cantigas de maldição.
"As terras do Maranhão, mais que quaisquer outras no Brasil, foram palco de um sincretismo profundo de crendices e religiões de índios nativos, negros escravos e brancos europeus", aponta o historiador Rosuel Lima-Pereira, nascido na cidade maranhense de Codó e professor no Departamento de Estudos Lusofonos da Universidade Michel de Montaigne, em Bordeaux, na França.
Pelos igarapés, ilhas, baías e manguezais do litoral, as matas do interior ou as ruas de pedra e os casarões do século 17 da capital São Luís, o Maranhão é o lar de uma gente submersa na espiritualidade, que aceitou o mistério como destino, vivendo de muitas maneiras sob a influência dos "encantados" - entidades mitológicas que aparecem em sonho ou são recebidas, em transes rituais, nos terreiros onde se praticam cultos religiosos próprios, de berço africano, como o tambor-de-mina e o terecô. Muitos deles derivam de personagens históricos reais, caso do português dom Sebastião, desaparecido durante a batalha de Alcácer-Quibir, em agosto de 1578, no Marrocos. Para os maranhenses, o rei português nunca morreu. Simplesmente se refugiou no quintal de suas casas - e, encantado, ressurge vez por outra para reafirmar a força mística do sebastianismo.
Sobre esses seres que transitam livremente entre o mundo dos vivos e o dos mortos, o povo maranhense sedimentou parte importante de sua cultura (o folclore do bumba meu boi, nascido no período colonial, pode homenagear um encantado), em uma espécie de manifesto libertário contra a opressão da vida em uma das regiões mais pobres do Brasil. "Os encantados fazem parte da identidade do Maranhão", completa Lima-Pereira, "porque ali sempre houve, e ainda há, espaço para o místico, o divino."
Os encantados lembram a importância da natureza, das estações, do tempo dos homens e do tempo dos deuses. E, nos Lençóis Maranhenses, essas dimensões parecem estar em comunhão.
Eu termino a minha viagem em um trecho ermo do parque nacional, uma paragem conhecida pelo nome de Espigão, onde o rio Grande atravessa baixios de dunas antigas, beirando pomares de cajueiros repletos de flores perfumadas. Nesse refúgio, uma família abrigou-se tempos atrás em duas humildes casas cobertas com a palha do buriti. Não há luz elétrica nem sinal de telefone celular ou qualquer ícone que nos remeta à civilização. Todos ali praticam o ofício de macerar a mandioca e torrá-la até virar farinha, o alimento primordial. Não parecem muito simpáticos a visitas de forasteiros, e labutam, umas dez pessoas ao todo, em silêncio de catedral. Só abdicam da rotina austera para comer, descansar, pescar ou navegar pelo rio até a cidade mais próxima, Santo Amaro, onde costumam vender seu produto.
Há algo de sagrado no ar - uma emoção quase tangível. A existência recupera o sentido da simplicidade, do suor e do trabalho que se tornam pão. Este é um deserto pródigo em milagres, e as areias que se transformam em água e peixes são apenas um entre muitos deles.
por Ronaldo Ribeiro
Fonte: NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL



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